Turismo em Minas Gerais | Cozinha mineira: tradição, território e identidade

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Atualizado em: 27/06/2025

Cozinha mineira: tradição, território e identidade

 

Na cozinha mineira, tudo tem história - até o silêncio entre um gole de café e outro. Cada receita é um enredo, cada ingrediente carrega uma memória. E é nesse clima de cheiro de pão de queijo saindo do forno e panela de barro borbulhando no fogão a lenha que começa mais uma edição do Gosto de Minas.

Hoje, nosso convidado é daqueles que mexe o tacho e a cabeça com a mesma intensidade: o chef Sinval Espírito Santo. Ele é mestre em Cucina Italiana pelo ICIF, doutorando em História pela UFMG e professor de Gastronomia com aquela pegada que mistura saber acadêmico com sabor de quintal. Membro da Academia Della Cucina Italiana e da Frente da Gastronomia Mineira, Sinval é também o chef por trás da Tibo Cucina. E…com um pé fincado em suas raízes mineiras e outro nas cozinhas do mundo, ele faz da comida um jeito de contar causos, assim como a Cozinha Mineira, e o texto que ele nos preparou fala exatamente disso: 

“A cozinha mineira, uma das mais emblemáticas expressões culturais do Brasil, é resultado de um processo histórico, social e simbólico que amalgama tradições indígenas, africanas e europeias, particularmente portuguesas. Mais do que uma simples prática alimentar, ela se configura como um sistema de significados que articula identidade, memória e pertencimento. Para compreender seus elementos fundantes, é imprescindível recorrer a autores que se dedicaram a desvendar suas camadas culturais e históricas.

Eduardo Frieiro, em sua obra clássica Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros (1966), foi pioneiro ao tratar a cozinha de Minas Gerais como um objeto legítimo de investigação intelectual. Para Frieiro, a culinária mineira é uma síntese da economia doméstica, da escassez e da criatividade. Segundo ele, o mineiro desenvolveu uma culinária de resistência e de engenho, a partir de ingredientes disponíveis localmente e de técnicas herdadas e adaptadas. A simplicidade aparente dos pratos, como o feijão tropeiro, o tutu de feijão e a couve refogada, esconde uma complexa articulação de práticas culinárias, tempo de preparo e simbolismo social. Frieiro destaca ainda o papel da tradição oral e do espaço doméstico, sobretudo da cozinha e do fogão a lenha, como centros de transmissão cultural.

Complementando essa perspectiva, José Newton Coelho Meneses enfatiza a dimensão simbólica e identitária da alimentação em Minas. Em diversos textos e ensaios, Meneses analisa como a cozinha mineira se estrutura em torno da ideia de comensalidade, ou seja, do ato de comer em conjunto, o que reforça laços familiares e comunitários. Ele ressalta que a alimentação em Minas é, antes de tudo, um ritual de convivência: o café coado com pão de queijo oferecido ao visitante, o almoço preparado lentamente aos domingos, as festas religiosas com pratos típicos preparados coletivamente. Para Meneses, “a culinária mineira expressa uma ética do cuidado, da acolhida e do pertencimento. típica comida mineira não é invenção da fome. É construção de fatores múltiplos e marcada pelas possibilidades das diversidades de gentes, de práticas e de ingredientes. Não é uma civilização do milho ou da mata; é isso e muito mais. Há paradoxos explicativos acerca da construção da comida mineira. E há controvérsias que são interessantes de serem pensadas. Centradas muitas vezes na premissa da fome e contrapostas a dados documentais que não evidenciam crises de carência, mas, ao contrário, testemunham crescimento populacional constante, diversificação de uma economia pujante de abastecimento interno e multiplicidade de práticas alimentares”

Mônica Abdala, por sua vez, acrescenta uma leitura que incorpora as dimensões de gênero e território. Em seus estudos sobre a cultura alimentar, Abdala analisa o papel das mulheres na construção e manutenção da tradição culinária mineira. A cozinha, tradicionalmente vista como espaço feminino, torna-se local de poder simbólico e de transmissão de saberes. Além disso, ela aponta que a cozinha mineira se desenvolve a partir de uma relação íntima com o território: o uso de ingredientes como o milho, o porco, o quiabo e a mandioca reflete não apenas a adaptação às condições geográficas e climáticas, mas também uma economia rural de subsistência baseada na roça e no quintal. A cozinha mineira é, assim, profundamente territorializada.

Desses autores, emerge uma concepção de cozinha mineira como um patrimônio imaterial em que se entrelaçam memória, afeto e história. Seus elementos fundantes não residem apenas nas receitas, mas na maneira como essas receitas são transmitidas, preparadas e partilhadas. O tempo lento, o fogão a lenha, o uso de panelas de barro, o saber ancestral e o valor dado ao ato de comer junto revelam uma visão de mundo que resiste à lógica da rapidez e da homogeneização cultural. Em suma, a cozinha mineira é um locus privilegiado de identidade, tradição e resistência cultural.

Como apaixonado pela cozinha mineira desde criança, vou apresentar uma curiosidade sobre um dos meus pratos favoritos da vida: o Frango com Quiabo e Angu.

 

Frango Com Quiabo

 

 

Curiosidade: Esse prato é considerado um dos mais “mineiros” que existem, mas sua origem é profundamente africana. O quiabo foi trazido pelos africanos escravizados e, no Brasil, adaptou-se facilmente ao clima mineiro.

Menos conhecido: O preparo do quiabo “sem baba” era um saber passado entre mulheres negras, e a técnica - refogar bem antes de adicionar o líquido - se tornou um marcador de habilidade culinária.

 

Angu Mineiro

 

 

Curiosidade: Derivado da farinha de milho ou de fubá, o angu era (e ainda é) base alimentar em muitas famílias.

Menos conhecido: O angu era considerado “comida de pobre” por muito tempo, mas possui forte ligação com a cozinha africana (semelhante ao fufu ou ugali) e indígena. Com o tempo, foi se sofisticando com acompanhamentos como carne de porco, ora-pro-nóbis ou molho de frango.

Apesar de conhecer as inúmeras técnicas para deixar o quiabo sem baba e de entender as origens do Angu preparado sem sal, eu adoro a sensação untuosa que a baba do quiabo traz para o caldinho do preparo, e também como toda reverência ao angu tradicional que minha avó fazia, gosto de adicionar um pouco de ousadia ao meu angu finalizando com um queijinho curado mineiro ralado e um fio de azeite.

Essas interpretações de clássicos da Cozinha Mineira mostram a versatilidade da nossa gastronomia e a habilidade de chefs que olham para as nossas receitas tradicionais, para nossos ingredientes de território e propõem uma "nova cozinha”mineira, sem querer inventar a roda ou trazer insumos exóticos ao nosso território. Porém, ao refletirem sobre nossas receitas tradicionais, mas incorporando novas técnicas de cozimento, de armazenamento e mesmo de provocação, acabam por trazerem uma nova forma de experimentar o "passado” pelo olhar e paladar novo. Essa dança quando bem feita pode ser muito celebrada. Vale destacar duas mulheres que fazem esse exercício lindamente em seus restaurantes: Ana Gabriela Costa do Trintaeum e Bruna Martins do Birosca S2.

Na feira MTM preparei um “Bolo de Farinha de Milho”. Essa receita é tradição familiar e aprendi com minha sogra. Muito prática e rápida, para a feira MTM interpretei a tradição introduzindo Queijo QMA e Goiabada. A brincadeira foi nomear essa dupla que anda junto em vários preparos pelo Brasil chamando-a de Riobaldo e Diadorim, afinal, quem tem Guimarães Rosa para mostrar sobre o amor entre duas coisas que se complementam, não precisa chamar de Romeu e Julieta. 

 

Bolo de farinha de Milho

(medidas em copos de requeijão ou caneca)

➢ 2 e 1/2 de farinha de milho

➢ 2 e 1/2 de leite

➢ 1/2 de óleo

➢ 1 de açúcar (ou um pouco menos)

➢ 4 ovos (ou 3 grandes)

➢ Pitada de sal

➢ Queijo a gosto (eu coloco tipo 1 copo)

➢ Goiabada cremosa

➢ Bate tudo na mão.

➢ Por fim acrescenta

➢ 1 colher de fermento.

Colocar a massa em uma forma untada. Adicionar pedaços de goiabada mole. Assar é só desenformar quando estiver morno. Se tentar tirar da forma quente ou frio quebra tudo. Sirva com uma caldinha extra de goiabada mole e um cafezinho coado na hora.”

É nesse caldeirão de saberes - dos autores que estudam a cultura alimentar mineira, das técnicas herdadas das avós, da criatividade dos cozinheiros contemporâneos - que seguimos cozinhando ideias, memórias e receitas. O frango com quiabo, o angu, o bolo de milho com queijo e goiabada: tudo isso diz muito sobre quem somos, de onde viemos e o tanto que ainda podemos inventar sem esquecer nossas raízes.

A cozinha mineira, com sua mistura de tradição, afeto e ousadia, continua a nos lembrar que comer é também um ato cultural e político. Que ao preparar uma receita de família, ao experimentar um prato reinterpretado ou ao batizar um bolo com nomes do Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa, a gente está criando pontes entre passado e presente, entre campo e cidade, entre o fogão e o mundo.

E que bom que tem gente como Sinval para seguir alimentando essas conversas com afeto, técnica e, claro, muito sabor. 

 

Referências Utilizadas Pelo Autor 

FABDALA, Mônica. Cultura alimentar e identidade mineira. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Cultura popular e cultura de massas. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 97–111.

FRIEIRO, Eduardo. Feijão, angu e couve: ensaio sobre a comida dos mineiros. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.

M E N E S E S, J o s é N e w t o n C o elh o ( o r g a niz a d o r ). N o s s a c o mid a t e m his t ó ria. B elo H o riz o n t e: Scriptum, 2020. 160 p.

 

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Sobre o Autor

Lara Calazans

Turismóloga e analista da SECULT. Amante da mineiridade, do Vale do Jequi e de um bom café com queijo.

Cozinha Mineira

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Sinval Espiríto Santo

Membro da Academia Della Cucina Italiana e da Frente da Gastronomia Mineira. Cozinheiro de Minas, orgulhoso de suas raízes e tradições. "causos",

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